123 DE OLIVEIRA BLOG

sábado, 5 de junho de 2010

Sobre Uma Vida Menos Ordinária

Ele abriu os olhos mas tudo continuou escuro, as juntas suavam e a posição embora fetal, era bastante incômoda. Seus sentidos não tinham costume com aquele casulo artificial. Barulho demais... Os braços doídos fizeram um primeiro esforço contra o tecido da camisa e do casaco mal ajustados no corpo, e um segundo para tatear o pouco espaço que sobrava. Quando percebeu pouca resistência na parte superior, usou as pernas semi-dormentes para ajudar... Ar... Muito Ar... Frio.... Muito Ar, Frio e Estrelas... Milhões e milhões de estrelas pontuando a cada segundo a continuação do preto anterior. O alívio foi tão grande que ele ainda ficou deitado ali, deixando aquela invasão pulmonar acontecer por alguns minutos. Os barulhos começaram a se diferenciar à medida que o cheiro de mato intoxicava o corpo urbano. Cigarras... Fazia tempo que não ouvia cigarras... Também um fluxo de água... Um barulho igual e constante porém agradável... Muito Ar, frio, milhões de estrelas, Cigarras, Fluxo de Água e tiros... Tiros? Contrariando qualquer lógica de segurança, levantou o tronco e se viu dentro de um porta-malas, silhuetas pretas de árvores onde o côro de cigarras provavelmente instalava-se, na outra extremidade um grande rio. Forçou a vista e viu marcas enormes de pneus denotando um equívoco de direção vindo da estrada que seguia uns 100 metros acima. Mais ninguém no carro. Mais tiros. Dessa vez a reação foi correta e ele se abaixou em proteção.
Os pensamentos tentaram se organizar mas não conseguiram, a lógica o fez tatear os bolsos mas não encontrou nada. Não lembrava o próprio nome... Gastou um tempo em lembranças falhas mas nem a posição fetal lhe trouxe pistas, levantou-se novamente e saiu se esgueirando pelo mato molhado de sereno, o medo e a falta dele andavam incompreensívelmente juntos, guiando-o para cima contra a marca dos pneus, muito esforço, dor e confusão mental. Chegou enlamaçado na estrada onde havia outro carro batido, o motorista protegido pelo cinto jazia pálido com a cabeça encostada no volante, o carona sem a mesma sorte tinha metade do corpo atravessando o vidro e esparramado de forma desorganizada no capot da frente. Confusão mental. Confusão Mental. Que nome? Confusão Mental. Cheiro de Mato. Mato e Sangue. Frio. Lama. Uma placa à frente. Uma ponte. Mais Esforço. Rio... Je...qui...ti...nho...nha. Rio Jequitinhonha. Jequitinhonha... Jequitinhonha? Árvores, Rio, Carro, Placa: Jequitinhonha. Jequitinhonha...Jequiti... Minas! Minas? Caralho! Tiros!
Quando teve coragem olhou pra outra margem e viu um clarão de pólvora na direção contrária da ponte, sua visão era obstruída pelas árvores, mas concluiu que aquele seria o resto do caminho... De ida? De chegada? Caralho... Jequitinhonha! De onde estava conseguia ver o carro de onde havia saído, se cortasse caminho por baixo da ponte chegaria mais rápido do que voltando à pista e descendo novamente o barranco. Achou que seria melhor e foi, esgueirando-se para não chamar a atenção da pólvora que volta e meia se manifestava na outra margem. Nome... Nome... Nome... Pai, Mãe, Mulher... Nome, não. Ao alcançar o porta-malas, percebeu que a lama em sua roupa tinha cor escura e saía de dentro do estômago devagar, deixando a mão, que até então ele ousara pensar que buscava proximidade do corpo por conta do frio, completamente ensanguentada... Sangue? Confusão Mental. Frio. Grude. Nome? Tiros! Jogou seu corpo de forma displicente dentro do porta-malas e respirou fundo. Dor, grude, tiros, frio, barulho de água, cigarras... Jequitinhonha... Caralho... Jequitinhonha.
Um último esforço fechou o porta-malas e na mesma vagareza que a minutos ele havia recuperado os sentidos, foi se esquecendo deles e voltando ao escuro, juntas esfriando, posição fetal não mais incômoda... Silêncio.
No dia seguinte, os jornais contavam tudo sobre a noite. Talvez ele tivesse orgulho de ver seu nome na primeira página.

(Texto escrito em 2005 para o blog "Tema Livre, Ficção e Sem Critério")